Capsula nº 589-B 12 - Subsolo 4 - Abgail Howard

" - Tudo bem.. tudo bem chicano.. vamos abrir. – Sem prévio aviso ele batia com o pé de cabra contra o vidro do painel. Sem resultado. O segundo golpe era dado ainda mais forte. De nada adiantava.. – Essa merda da emperrada porra.. – O pé de cabra era fincado contra a porta.. Pablo ainda tentara avisar e impedir que o amigo fizesse o movimento, mas era tarde. A descarga elétrica era dada e o pé de cabra servia como condutor. Tony não conseguia soltar o pé de cabra. O cheiro de carne assada espalhava-se pelo lugar em meio aos gritos do homem que sangrava pelas órbitas. Os olhos esbugalhados saltavam do rosto enquanto ele urinava-se. Já não haviam mais gritos apenas o corpo carbonizado que insistia em manter-se preso ao pé de cabra.. Pablo ainda gritava encostado na parede. Tinha medo de encostar no amigo e levar o choque por condução."

A discarga elétrica que corria pela capsula reativava o reator. Pouco a pouco a iluminação da sala era novamente acesa parte a parte. Alguns estouros poderiam ser ouvidos quando as lampadas velhas recebiam a corrente. Pablo olhava o amigo carbonizado no chão. O odor de carne queimada tomava todo o lugar, misturado com a fumaça densa que se formava. Dentro da capsula de Abigail o liquido aminiotico começava a ser drenado pouco a pouco... o Despertar da Harcker vinha lento e desconfortável. O oxigenio era acionado pelos tubos que penetravam as narinas e seguiam direto para os pulmões. A lufada de ar novo parecia poder estourar os pulmoes da mulher. Lentamente as agulhas com a alimentação venosa eram retiradas. A atividade cerebral retomada e os leitores começavam a piscar como loucos diante de Pablo.

- Ai caralho!! Que merda é essa agora?!!?!

Todos os vaults que ele ja tinha invadido resultavam em arrombamentos com morte do selecionado. Este era o primeiro que parecia ligar sozinho. Ele andava de um lado a outro, vendo a mulher nua dentro da capsula, que tinha o liquido azul a baixar lentamente. Para Abbe vinha a dormencia dos musculos, dos membros. A inercia durante tanto tempo gerava o desconforto da tentativa de usa-los. Os olhos que se abririam veriam o lugar ao redor, ainda com a dificuldade causada pelos restos viscosos do liquido. O primeiro vidro era então baixado revelando o tronco e o rosto da mulher. Os tubos de oxigenio retirados tão logo os batimentos cardiacos estavam dentro dos paramentros normais. O frio que tomaria a pele, mas a porta da capsula ainda estava fechada.

O ar entrava violento por entre as vias respiratórias de Abgail. Tão forte era o impacto contra os pulmões que a primeira reação ao Despertar fora uma grande crise de tosse. Tossia tanto que facilmente engasgava. O corpo permanecia molenga dentro da cápsula, sentado e imóvel no pequeno espaço que o portava. A cabeça girava e os olhos ainda não acostumados a luz, abriam e fechavam tentando clarear uma visão bastante turva e impossível de se identificar. As córneas doíam como mecher os dedos das mãos também doíam. E aquela gosma azulada sobre a pele? Abgail estava demente demais para descobrir. Sentia frio, gemia às dores como um miserável que bebera tanto que a ressaca era tamanha. Disso ela se lembrava, ressaca fora sempre parte importante da sua vida antes disso... isso era diferente... Analisava o chão de onde estava, lançando um olhar débil ao redor e à própria pele. Os dedos se enchiam daquele líquido misturado a sangue e os olhos, que mal se abriam, tentavam visualizá-lo. O segundo movimento era direcionado as pernas para lhe dar sustento e ficar de pé, como os braços que seguravam as paredes de vidro da cápsula, impulsionando o corpo. A primeira tentativa falhava, era óbvio.. o líquido fazia Abgail escorregar e bater as nádegas de volta na superfície dura, o que de certa forma era doloroso. Olhou para cima, seus movimentos eram tão lentos que podia-se calcular precisamente qual seria o objetivo de cada um. Tocou novamente a parede de vidro, via através dele quando a visão já se acostumava.. tinha um homem ali.. na verdade dois: um caído e outro de pé, ao que Abgail conseguia identificar. Bateu com o punho fechado contra o vidro da frente, a porta da cápsula, sem força alguma, uma vez, duas. Se abriria? Se sim, Abgail cairia para fora da cápsula, encolhida em posição fetal. Se não, ela se recolheria e se abraçaria, batendo o queixo de frio.

O homem tentava se comunicar. Abgail o ouvia, primeiro capitava uma voz etérea, algum tempo depois era suficientemente clara. Que tipo de droga foi a que deram a ela? Ou melhor.. que tipo de droga foi a que deram a ele? Abgail, um tipo de ET? Devido as circunstâncias, ela não poderia nem condená-lo.. Não respondeu com voz, mas sua cabeça meneou estranhamente. As palavras confusas se ajeitavam, a consciência voltava a seu estado normal, mas ela ainda parecia meio zonza com seus membros disfuncionais...

Finalmente a porta da cápsula se abria, Abgail rastejava lenta até ela segurando-se pelas bordas.

- Pareço bem? - a voz saía em tom mastigado, Abbe limpava a garganta com um pigarro que lhe doía ao engolir.

Colocava o primeiro pé no chão, caso conseguisse, apanhando a camisa velha que seus reflexos não conseguiam deter no ar. Se enxugou como podia, observando de esguelha o homem assustado.

- Qual a sua? Fã do J. J. Abrams? Sou tão humana quanto você, para de me olhar como se eu fosse algum bixo com oito olhos ou sei lá! - passava a camisa pelo rosto, não se importando em estar nua.

- Tem mais de onde veio essa? - questionava o desconhecido por mais roupas.

Como se pega por uma epifania, Abgail olhava para baixo e para o próprio tornozelo. Maldito, ele continuava lá, piscando brilhante!

- Não poderia ter me livrado disso também não?! - gritava olhando os arredores como se alguém pudesse ouví-la. E o que era tudo aquilo? Um baita desordenado!

Baixou-se até a altura do pé e tentou forçar o marcador de perímetro para se livrar dele.. Sem sucesso. E na mesma linha de visão o homem deitado lhe dera calafrios. Erguia o corpo devagar com os olhos bem abertos. O corpo estava carbonizado! Abgail encarou o homem de pé, associava uma coisa com a outra, mas como ele tinha conseguido fritar o cara? Se afastou dele alguns passos para trás, cheia de receio.

Franzia o cenho, parando de se enxugar com a camisa rente a boca quando o rapaz se dirigia a ela daquela forma.

- Talarion? Do que diabos você tá falando? - o encarava como se ele estivesse dizendo coisas sem sentido. Ela nunca ouvira nada igual, ou não conseguia lembrar de nada parecido...

A resposta que ele queria poderia ser dada depois que ele fizesse a parte dele, respondendo antes. Abgail não tinha porque esconder sua identidade, mas também não precisava dá-la a um desconhecido metido a geek, vindo diretamente do planeta Taco e com um pé de cabra na mão! E pedia por credenciais? Ela se cobria com a camisa, vestindo-a.

- Vou dá-las a você, se largar esse pé de cabra e me ajudar a abrir meu cofre.. Eu não vou te comer, fui bem alimentada dentro dessa cápsula.. - Abgail teria o assustado com um "buu" ou algo assim, mas achava que um pé de cabra enfiado no meio da testa não ficaria de acordo com seu estilo.

E o barulho. "What the hell is going on out there?!" Abgail direcionou os olhos para de onde o som vinha com mais força. Não sabia o que acontecia lá fora, mas não parecia boa coisa.. Por precaução apressou-se a abrir o cofre e tirar de lá suas coisas, inclusive as credenciais. Mostrou-as rapidamente ao "chico", se vestindo por completo, se possuísse alguma roupa ali.

- Tá vendo? Já viu? É Abgail Howard, a hacker do governo! Muito prazer, senhor Sombrero! - esticou a mão para um breve cumprimento. Irônico, claro. Ficou um tempo em silêncio esperando que ele dissesse o verdadeiro nome. - Sério, eu realmente quero saber seu nome..!

Era empurrada contra a parede e é claro que tentaria resistir, ao menos para se livrar do homem. Não poderia acreditar que tinha caído naquela! Que idiota! Ele se afastava para buscar os mantimentos de dentro do cofre, Abgail não sabia exatamente o que fazer, mas ele estava distraído, alguma coisa sairia, seu instinto não a deixaria na mão! O guapo estava roubando suas coisas, não sabia porquê, não imaginava, mas ele roubava comida! Não se rouba nada de Abgail Howard e se sai ileso!

- O que você tá fazendo, cara? Tá morrendo de fome?

Concorda-se que ele estava em posse de uma arma branca e muito provavelmente iria usá-la contra a mulher assim que tivesse a oportunidade. Mesmo que ela tentasse a força contra ele o pancho era homem e iria se vingar! Ela o encarava como se a qualquer momento fosse revidar a insolência dele. Nas vezes que ele baixava a cabeça Abgail calculava a distância dali até a porta de saída. Matemática, probabilidade, você é boa nisso Abbe! Ela permaneceu calada durante toda a explicação dele, agora com certo ódio carregado no olhar, mal se preocupava com o monstro escamoso, Sleen, o que quer que fosse. Ela não conseguia raciocinar! Queria xingar o ladrãozinho e soltar toda a raiva que tinha dele no momento, mas era melhor não... Deixava ele sair. Abgail recolhia o que fosse suficiente para levar consigo, inclusive o pé de cabra que fora deixado ali.. Não sobrava comida ou água, objetos pequenos ela colocava nos bolsos. O canivete dela estava ali? Aquela droga de marca passo dos infernos estava ali? Ótimo... Abgail andou até a porta, o escuro era evidente e ela o ouvia claro. Ele podia ver silhuetas, ela também e estava bem a esquerda dele escondendo a ferramenta atrás da parede. O homem poderia ver Abgail? Ele fazia a pergunta, distraído com alguém a sua frente. Olhava, mas não apontava a arma para ela. Abgail elevava a mão em posse do pé de cabra e acertava a cabeça com tanta força que sua intenção, além de fazê-lo desacordar, era de quebrar alguns ossos. Empunhava a ferramenta como se segurasse uma espada, ameaçando bater no bambino caso ele se aproximasse se não fosse possível tê-lo abatido. E o homem que estava ali? Por favor, que fosse bonzinho! Nas demais circustâncias Abgail procurava com os olhos pela arma, qualquer coisa era correr e apanhar, se conseguisse..

O ladrão caía desacordado e um filete de sangue desenhava-se pela pele de seu rosto. Abbe empurrava o corpo com o pé, só por garantia.. Ótimo, ela o havia abatido e, pelo que aparentava, não iria acordar tão cedo. Era melhor que nem acordasse.. essa ideia misturada a do aparecimento do novo pirata cyberpunk mexia com os instintos defensivos de Abgail, que ainda segurava o pé de cabra agora contra a imagem dele, os pés afastados um do outro e a adrenalina correndo solta dentro de suas veias pulsantes. Ela não podia confiar em ninguém depois deste último evento. Balançava a ferramenta contra ele, dando solavancos com o corpo como se prestes a avançar em cima.

- Yo-ho! Nem mais um passo, pirata!

E o que ele dizia não importava a ela. Quando encontrou a pistola com os olhos ágeis e quase desesperados, abaixou abandonando o pé de cabra e munindo-se da arma mais potente, pondo a mochila nas costas. Apontava diretamente ao homem e nunca deixava de fazer isso.

- Olha a boca! Ainda está engatilhada, se eu fosse você tomaria cuidado! Não vai ser mais um ladrãozinho de comida metido a Barba Rosa que vai me fazer poupar derramamento de sangue! - Ela sabia manusear armas? Não teria graça se eu contasse, mas parecia segurar com precisão...

O cheiro cítrico lhe invadia as narinas como devia ter invadido as do pirata, Abgail coçava o nariz. Ao menos o barulho de metal sendo moído e de vidros sendo espatifados cessara depois de um frenesi de efeitos sonoros digno de Oscar! Isso era bom, não era? Ela fitava o homem da cabeça aos pés.

- Sabe onde fica a saída desse lugar?

O homem de tapa olho se aproximava de Pablo sem sequer ser atingido pelas palavras de Abgail. Ela poderia ter atirado nele, caso não notasse que o que segurava nas mãos não se tratava de uma arma comum, mas um sinalizador. Olhou para ele, analisando. "De que essa coisa vai me servir?". No mais, observou o pirata se aproximar do corpo e ajudá-lo a estancar o sangue.

- O que você tá fazendo?! Esse cara roubou minhas coisas! - por reflexo continuava apontando o sinalizador para o homem.

E ele pedia para que ela o abaixasse, mas bem que poderia ser um pouco mais gentil também..

- Foda-se! Não vou ajudar o cara que roubou minhas coisas! - ela ajeitava a mochila do ladrão as costas, ainda apontando o sinalizador.

Abbe viu que o pancho caíra sobre outro corpo aparentemente inerte, o que fez a entrar em estado de alerta. E o latino acordava, Abgail passava a apontar o sinalizador para ele rapidamente, alternando em intervalos pequenos entre ele e o pirata, já que agora não sabia quem gostaria de matar primeiro... Ouvia o ladrão falar sobre os Sleens, os tais largatos gigantes. Era óbvio que precisavam sair dali, sob qualquer circunstância... E lá estava, um belo e atrativo par de olhos vermelhos surgindo na penumbra junto a novos guinchares ensurdecedores e monte de fumaça. Abgail tocava as orelhas como se o som fizesse mal ao cérebro entrando pelas vias auditivas. Olhava diretamente para aqueles olhos com os seus extremamente abertos e surpresos, dentro do corpo corria uma sensação que ela não costumava sentir, mesmo apreciar: o medo. Ficou parada, as pernas não se moviam, demorou um pouco até que o animal avançasse, abocanhasse o maldito chico e o rasgasse inteiro. Abgail queria vê-lo morto, mas aquilo era palhaçada! Na mesma hora ela não quis mais saber de nada a volta, atirou o sinalizador apontado para os olhos do bicho.

- Tem alguma ideia melhor? - falava para o pirata.

Se o tiro fizesse efeito ou não, lá estava ela, correndo por um dos corredores a toda, como se sua vida dependesse disso e realmente dependia.

E o lema era: "pernas pra que te quero?". Abgail corria na frente tomando certa dianteira mesmo que a mochila atrapalhasse um pouco. Além das suas coisas as do mexicano também estavam nela. Mas não abandonava o pirata, que facilmente passava por ela e liderava. Se aquilo fosse um campeonato, ele teria ganho a medalha de ouro. Corriam como podiam, e era feliz a situação de ser na mesma direção, ou não, vai saber. O instinto de Abbe era seguir o pirata, geralmente eles tem noção de direção e com uma bússola era melhor ainda! Ele parecia saber para onde ia, as curvas que fazia eram precisas, embora a corrida fosse quase difícil de acompanhar. Abbe não vira o que acontecera com o animal, mas ouvia os outros guinchares e rapidamente sentiu-se arrependinda em demasia de ter atirado no bicho. Nos primeiros passos ela tinha tropeçado uma ou duas vezes e durante o percurso seus pulmões enchiam-se de solução explosiva, pois pareciam que a qualquer minuto sairíam para fora do peito, disformes... Chegavam na saída! Para alívio de Abgail e do até então desconhecido, certo? Fitou o ciclope, dando-lhe um olhar singelo de gratidão.. E agora? Estamos a salvos, não estamos?